Imigração pelas Canárias

Rota para o paraíso
As Ilhas Canárias são a nova porta deentrada de imigrantes africanos na Europa
Ruth Costas
Encravadas no Oceano Atlântico, as Ilhas Canárias são um dos mais populares balneários da Europa. Todos os anos, quase 10 milhões de turistas – cinco vezes a população local – desembarcam em seus portos e aeroportos para curtir o clima ameno, banhar-se em águas termais ou se divertir em cassinos e campos de golfe. Neste ano, um novo grupo de visitantes está chegando aos milhares ao arquipélago, por uma rota bem mais arriscada e com outros objetivos: os homens e mulheres que fogem da miséria e do desemprego da África Subsaariana em pequenos barcos apinhados. Tornou-se comum os turistas europeus terem de abandonar seu banho de sol na praia para socorrer refugiados exaustos e desidratados, que chegam às ilhas depois de viajar por até 1 500 quilômetros em mar aberto. Como pertencem à Espanha, as Canárias são parte da União Européia e, portanto, do paraíso – ao menos do ponto de vista dos imigrantes africanos. Desde o início do ano já chegaram às areias do balneário 21 500 clandestinos, quase cinco vezes mais que no ano passado. A Cruz Vermelha estima que outros 3 000 morreram na tentativa – nos últimos oito meses, foram encontrados 490 corpos nas praias canárias.
As Ilhas Canárias são apenas a nova rota de um problema antigo: a tentativa frustrada da Europa de barrar o crescimento desenfreado da população de imigrantes ilegais e com baixa qualificação profissional. Estima-se que 15% dos 56 milhões de estrangeiros que vivem na Europa sejam clandestinos. Nos últimos anos, com o aumento do patrulhamento no Mar Mediterrâneo e o reforço nas cercas que protegem os enclaves espanhóis do norte da África, os traficantes tiveram de encontrar caminhos mais seguros para colocar seus clientes em território europeu. Inicialmente, partiam com seus barcos abarrotados do Marrocos em direção às Ilhas Canárias, a apenas 160 quilômetros de distância. Quando o governo marroquino intensificou o policiamento de sua costa, os imigrantes tiveram de partir de lugares cada vez mais distantes, como o Senegal e a Mauritânia. Os moradores das Ilhas Canárias temem que a enxurrada de imigrantes acabe por arruinar o turismo, responsável por quase 40% da economia da região. O enrosco maior, no entanto, acontece no continente. Como o arquipélago não possui infra-estrutura suficiente para abrigar tantos africanos, eles são transferidos pelo governo espanhol para a Península Ibérica. A lei do país só permite que fiquem detidos por quarenta dias. Como muitos não têm documentos, é praticamente impossível extraditá-los. Resultado: os imigrantes clandestinos são colocados na rua com um sanduíche, uma garrafa d'água e um ofício determinando que voltem para sua terra. Não é difícil concluir que a maioria prefira ignorar a ordem e ficar na Espanha ou se mudar para outro país europeu.
A Espanha passou as últimas semanas pedindo ajuda à União Européia para resolver a crise, com o argumento de que se trata de um problema de todos os europeus. Os espanhóis querem uma estratégia conjunta de seus parceiros na Europa para controlar as fronteiras, além de mais dinheiro para reforçar a vigilância marítima e pagar os custos do repatriamento de imigrantes. Apesar de a livre circulação de pessoas já ser uma realidade em grande parte dos países-membros da União Européia, cada um tem sua política migratória. A Espanha, por exemplo, foi criticada no ano passado por causa de um projeto para anistiar mais de 600 000 imigrantes ilegais, em uma tentativa de aumentar o volume de impostos arrecadados e controlar as condições de trabalho desses estrangeiros. Com a anistia, o governo espanhol tentou dar uma solução pragmática para uma questão que divide os europeus: o paradoxo da imigração. Por um lado, teme-se o choque cultural que a invasão de estrangeiros poderia causar. Por outro, a chegada de trabalhadores de fora é uma injeção de vigor na economia da região.
Os imigrantes trabalham na colheita, constroem edifícios e limpam casas, garantindo a mão-de-obra jovem e barata necessária para preencher postos de trabalho rejeitados pelos europeus. De acordo com uma pesquisa de um banco catalão, não fosse pelos estrangeiros, na última década a economia espanhola teria caído 1% por ano, em vez de crescer a uma média de 3,6%. Mesmo admitindo a entrada de trabalhadores como uma necessidade econômica, muitos europeus ainda temem que o ritmo com o qual ela vem se intensificando seja insustentável. A Inglaterra, por exemplo, no ano passado, deu vistos de permanência a 180.000 estrangeiros, três vezes mais que em 1996. Pelas estimativas mais conservadoras, outros 600.000 imigrantes já vivem ilegalmente no país. Na Espanha, os estrangeiros passaram de 2% para 10% da população na última década. Apenas uma minoria veio em barquinhos saídos da África. A imagem de pessoas exaustas e famintas chegando às praias canárias, no entanto, é a face mais dramática de um dos maiores desafios do bloco europeu neste início de século.
Fonte: Revista Veja, 10 de setembro de 2006.